No dia 8 de março, “comemora-se” o Dia Internacional da Mulher. As aspas revelam justamente a reflexão que propomos aqui. Há o que comemorar?
Nós poderíamos celebrar as conquistas das mulheres nas últimas décadas, os avanços legislativos no que concerne à proteção jurídica das mulheres, os espaços que passaram, gradualmente, a ser ocupados por mulheres, dentre outros progressos.
No entanto, o mês de março é um mês de luta. É um mês de reflexão. É um mês em que, muito além de celebrar, devemos falar do que é incômodo aos ouvidos de alguns.
A violência contra as mulheres é uma realidade, uma triste e revoltante realidade. Tomemos por base os dados relativos à violência letal e sexual praticada contra meninas e mulheres no Brasil, que integram o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, apresentado, neste mês, pelo Fórum Brasileiro de Segurança em alusão ao Dia Internacional da Mulher.
De acordo com o Anuário, entre março de 2020 — início da pandemia de Covid-19 — e dezembro de 2021, foram registrados 2.451 feminicídios. Quanto aos crimes sexuais, neste mesmo período, 100.398 meninas e mulheres registraram casos de estupro e estupro de vulnerável no país.
Há o que celebrar, considerando que, em 2021, em média, uma mulher foi vítima de feminicídio a cada 7 horas?
Há o que festejar, tendo em conta que, no ano passado, uma menina ou mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos?
Dizem que o progresso acontece fora da zona de conforto. Nesse contexto, sair da zona de conforto é trazer ao debate uma pauta que incomoda. Receber, mas não se contentar com as flores e felicitações no mês de março.
Ao evidenciar a violência que recai sobre os corpos femininos em razão do gênero, muitas de nós somos taxadas como alarmistas. Alguns ainda reduzem a luta das mulheres ao oco “mimimi”.
Contudo, tratar sobre assuntos como a igualdade de direitos que garante que nossos corpos sejam livres de violência e mantenham-se vivos é urgente. Pensar nas consequências dessas violências é inadiável.
Neste mês de março, usemos nossa voz para reivindicar. Reivindiquemos que meninas e mulheres vivam livres de estereótipos machistas que as aprisionam em espaços limitados.
Reivindiquemos que as mulheres sejam remuneradas de forma igualitária e ocupem, cada dia mais, os cargos de liderança usualmente reservados aos homens.
Reivindiquemos que as mulheres exerçam a sua liberdade como bem entenderem, que tenham acesso às mesmas oportunidades concedidas aos homens.
Reivindiquemos que mulheres deixem de ser revitimizadas ao denunciar e, ainda ouvir perguntas que descredibilizam as suas falas e ofendem seus direitos fundamentais.
Reivindiquemos que as mulheres advogadas sejam respeitadas enquanto atuam na defesa dos direitos de suas clientes e, assim, deixem de ser surpreendidas com petições agressivas (geralmente subscritas por homens advogados), que extrapolam os limites da atuação legal e ofendem às suas honras.
Ainda há muito o que ser feito.
Um ponto crucial é a mudança de paradigmas. É preciso mudar a nossa cultura. É preciso, cada dia mais, que o pensamento social se distancie de suas raízes patriarcais.
Nós mudaremos essa dura realidade entendendo como os símbolos de poder e dominação masculina impactam os nossos pensamentos, a nossa tomada de decisão, o nosso julgamento.
Vamos mudar quando olharmos para as dores e cicatrizes que carregamos por termos crescido nesse ambiente que estimula as mais diversas formas de violência contra as mulheres.
Quando educarmos as nossas crianças de forma diferente: pararmos de dizer aos meninos que não chorem, pararmos de atribuir afazeres domésticos apenas às meninas.
Evoluiremos quando quebrarmos o tabu que ainda envolve a educação sexual para conversarmos com as nossas crianças e adolescentes sobre quem pode ou não tocar em seus corpos. Para conversarmos sobre a importância do consentimento.
Avançaremos enquanto sociedade quando mudarmos a concepção que carregamos sobre os estereótipos femininos e masculinos e os papéis sociais atribuídos a ambos.
A mudança acontecerá, também, quando os agentes que atuam nas instâncias formais de controle que, no fim das contas, foram socializados como todos nós, estiverem capacitados de maneira adequada para atender às mulheres vítimas de violência.
Se esses profissionais estiverem distantes da realidade complexa que assola a vida das mulheres, de nada adiantará termos legislações tão evoluídas: as mulheres continuarão sendo revitimizadas, culpabilizadas e desacreditadas.
Progrediremos quando reconhecermos que a grande maioria das meninas e mulheres sobreviventes não tem a oportunidade de olhar para as cicatrizes não visíveis que marcam a alma, as emoções e os pensamentos em decorrência da violência que sofreram.
A vulnerabilidade econômica e social são fatores determinantes no que diz respeito à violência. Pensando nisso, quantas dessas mulheres, sobreviventes de violência doméstica e sexual no nosso país, têm acesso a terapias, redes de apoio, profissionais especializados?
Precisamos, assim, de mais políticas públicas. Políticas de prevenção, mas também políticas de acolhimento.
Com ainda tantas mudanças necessárias, será que aguardamos um cenário utópico para que o mês de março possa ser celebrado?
Já dizia Eduardo Galeano que a utopia é aquilo que faz com que não deixemos de caminhar. Que possamos construir esse caminho, dia após dia, reconhecendo os esforços anteriores e almejando um horizonte igualitário e livre de violência.