A instituição insere ações afroeducativas no ensino infantil e propõe uma formação trilíngue, para comunicação e emancipação

Escolinha Maria Felipa é a primeira escola afro-brasileira do país, uma instituição trilíngue que atende crianças do Grupo II ao 2º ano do Ensino Fundamental I. Em entrevista ao Dicas de Mulher, a professora idealizadora da iniciativa, Dra. Bárbara Carine, apresenta como surgiu a ideia e fala sobre a importância de ações afroeducativas. Confira a seguir!

Por que criar uma escola afro-brasileira?

A idealizadora do projeto explica que a proposta de criação da escola surgiu do seu processo de maternagem. “No contexto de adoção da minha filha, quando eu percebi que o processo foi deferido, comecei a me preocupar com a escola que aquela menina preta, que seria a minha filha, estudaria em Salvador, tendo consciência dos aspectos eurocentrados da constituição pedagógica”.

Ela acrescenta que a preocupação com o eurocentrismo e aspectos brancocêntricos da educação ia além da dimensão curricular, incluindo “também a admissão existencial e a dimensão das esferas de poder”. Isso acontece, como ela explica, porque “a escola reproduz o racismo que está dado nas macroestruturas sociais”, de forma que a maioria das pessoas em posições de poder na instituição são pessoas brancas.

“Isso me incomodava, no sentido de que minha filha, desde muito cedo no seu microuniverso, que é o universo escolar, reconheceria que pessoas brancas estão em condições sociais unicamente de destaque. Enquanto pessoas negras estão ali limpando o chão, limpando o bumbum das crianças, limpando o banheiro, trocando fralda, abrindo o portão, ou seja, estão nos espaços subalternizados unicamente”, declara Bárbara Carine.

Para além dessa reprodução social, o eurocentrismo curricular aparece no modo como a história é contada dentro das escolas – como se a história dos afrodescendentes começasse como descendentes de escravizados. A professora explica que a humanidade surge na África, portanto não faz sentido que a África desapareça do estudo histórico para “voltar no século dezessete para ser escravizada. Então, nesse sentido, há um apagamento histórico nas escolas no Brasil. Há um apagamento curricular no campo das memórias das pessoas negras.”

A partir disso, a Escolinha Maria Felipa surge como um espaço de acolhimento. “Não só para minha filha, mas para todas as crianças cujas famílias, sejam elas negras ou não negras, lutam pela construção de uma sociedade igualitária”, pontua Bárbara Carine.

A importância de ações afroeducativas

A professora Dra. Bárbara Carine explica que, “em uma sociedade estruturalmente racista, só alterando as estruturas da própria sociedade nós conseguiremos reverter esse sistema de opressões”.

Nesse cenário, a escola básica aparece como um órgão essencial, “uma instituição social estruturante de todo o sistema e também estruturada pelo sistema”. Sendo assim, “a escola reflete o racismo que está pautado na macroestrutura, mas, ao mesmo tempo, também ela tem poder transformador dessa realidade social”.

Desse modo, a inclusão de ações afroeducativas na formação de crianças e jovens é uma atitude fundamental para o combate ao racismo e a emancipação das pessoas negras, com a valorização da diversidade cultural.

Como funciona a rotina escolar na Maria Felipa?

A rotina escolar na Escolinha Maria Felipa segue o mesmo padrão de organização de todas as escolas brasileiras. “É uma escola que também se articula com os marcos legais, educacionais, do nosso país”, destaca Bárbara Carine. Assim, sua estruturação segue todas as normas oficiais do MEC (Ministério da Educação). O que muda é a forma como são abordados os assuntos acerca da história africana e das comunidades indígenas.

Como esclarece a idealizadora, “é uma escola que tem um projeto histórico de emancipação cultural a partir da apropriação dos conhecimentos ancestrais africanos e indígenas, associados aos conhecimentos europeus que já estão dados em todas as escolas”. Todos os assuntos que fazem parte da grade curricular comum brasileira são abordados na escola, de forma que a continuidade dos estudos de seus alunos pode ser realizada em qualquer instituição do país.

No entanto, a formação na Maria Felipa agrega um diferencial, como explica Bárbara Carine, a partir de uma série de relatos sobre a continuidade da educação dessas crianças. “Essa continuidade vai ser a partir de outro lugar. Vai ser a partir de um lugar crítico, reflexivo, argumentativo. Ela não se torna aquela criança que assume tudo aquilo que lhe é apresentado como verdade, mas uma criança que problematiza a realidade social, a partir dos seus marcadores ancestrais positivados.”

A instituição é estruturada, ainda, como uma escola trilíngue, que tem aulas em português, em inglês e em Libras. Além disso, a professora destaca que são ofertadas “aulas especializadas, também, dança de capoeira, dança afro, de circo, de teatro… E tudo se integra em um grande projeto afrorreferenciado, transversalizado ao longo do ano”.

Uma escola trilíngue

A idealizadora da escola explica que a concepção de uma escola trilíngue parte de entender a importância de apreender a nossa língua pátria, o português. Além disso, também o inglês, partindo do princípio de que “é preciso emancipar as crianças a partir desse idioma, que é de referência mundial”. Já o ensino da língua brasileira de sinais, Libras, não é feito em um simples sistema de tradutor, com um intérprete na presença de uma criança surda, mas reconhecendo “Libras como uma linguagem, uma língua que a gente precisa acessar para se comunicar”.

Ela explica que aprender outros idiomas também é importante para desenvolver os instrumentos do pensamento. “Nossos irmãos africanos sabem cinco, seis idiomas. Crescem ali atravessados por vários marcadores culturais, enquanto temos essa perspectiva extremamente limitada no Brasil, que precisamos superar no nosso processo formativo”.

Projetos institucionais

A Escolinha Maria Felipa ainda conta com alguns projetos institucionais, como o ‘Afrotech’. Bárbara Carine explica: “é a nossa feira de ciências e tecnologia africana. É uma feira anual para as crianças, em que elas desenvolvem maquetes, protótipos de tecnologias ancestrais africanas”.

Outra iniciativa é o ‘Desconstruindo o Mix’. A idealizado conta que trata-se de um projeto “acerca da intelectualidade negra e indígena. Nós levamos sempre personalidades negras e indígenas em posições sociais de destaque”. Como exemplo de participação nesse projeto, Bárbara Carine menciona que, na última semana de julho de 2022, a escola recebeu a Dra. Neuza Maria Alves da Silva, a primeira Desembargadora Federal Negra do Brasil.

Como estudar na Maria Felipa

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A Maria Felipa é uma instituição de ensino particular, cuja mensalidade, atualmente, gira em torno de R$ 890 para o ensino infantil e R$ 950 para o ensino fundamental. A escola também possui um projeto de bolsas institucionais. “Hoje temos um corpo discente de 70 crianças das quais 17 são bolsistas, que são crianças negras e/ou indígenas em condições de vulnerabilidade social”, pontua a idealizadora.

Para manter o sistema de bolsas, a escola conta com contribuição por meio do projeto ‘Adote um Educante’. A professora explica que “é uma espécie de vaquinha online, nas redes sociais, em que as pessoas contribuem mensalmente a partir de cinco reais”. No entanto, essa contribuição ainda é muito inexpressiva, conseguindo cobrir cerca de 4 das bolsas ofertadas pela escola.

Projetos similares

A Escolinha Maria Felipa é a primeira e única iniciativa de educação infantil registrada na Secretaria de Educação como uma escola afro-brasileira. No entanto, Bárbara Carine cita que existem outras instituições de educação, de natureza não formal, que buscam contribuir para o empoderamento da cultura afro-brasileira.

Entre essas iniciativas, ela menciona a Escola Olodum e o Instituto Steve Biko, que, “por mais de trinta anos, forma estudantes para ingressarem em cursos de nível superior”. Além disso, a professora destaca uma série de quilombos educacionais que existem em Salvador, como cursos preparatórios para o ENEM.

 

FONTE: https://www.dicasdemulher.com.br/noticias/escolinha-maria-felipa-primeira-afro-brasileira/