A Noruega proibirá ‘influencers’ de retocar fotos sem aviso prévio. Mas o controle da aparência na internet pode ser, em algumas circunstâncias, empoderador
Filtros são ferramentas automatizadas de edição de fotos que usam inteligência artificial e visão computacional para detectar características faciais e modificá-las. Embora na aparência seu funcionamento seja bastante simples, na realidade é uma proeza técnica possibilitada pelos avanços das redes neurais (um modelo computacional baseado no cérebro humano) que permitem o processamento de dados necessário para alterar vídeos em tempo real. São amplamente utilizados em redes sociais como Instagram e TikTok, que os incorporaram após seu surgimento em 2017, quando a empresa Snap Inc. anunciou o lançamento da plataforma Lens Studio para o desenvolvimento de efeitos de realidade aumentada no Snapchat. Os primeiros filtros tinham um caráter lúdico e sobrepunham ao rosto do usuário desenhos animados, como orelhas de cachorro, mas hoje se tornaram populares aqueles que modificam a fisionomia para conseguir um embelezamento instantâneo. O Instagram possui uma galeria onde é possível testar e salvar filtros criados por outras pessoas, bem como criar os próprios filtros e deixá-los à disposição de outros usuários.
A questão da autorrepresentação em ambientes virtuais tem sido objeto de debate desde a difusão inicial das tecnologias de informação e comunicação e é considerada um espaço possível para a emancipação de gênero. Uma das propostas que mais influenciaram a importância de como nos apresentamos online foi o ciberfeminismo dos anos 1990: para autoras como Sandy Stone ou Sadie Plant, o ciberespaço oferecia a oportunidade de escapar das restrições de identidade ao eliminar todos os sinais físicos e corporais de comunicação, dando origem a interações que não estariam sujeitas a julgamentos por sexo, idade, raça, voz, sotaque ou aparência, mas baseadas exclusivamente em trocas textuais. O potencial residia na possibilidade de anonimato.
“Ninguém na internet sabe que você é um cachorro”, afirmava um cartoon popular publicado em 1993 na The New Yorker. Naquela época —antes do novo milênio— a internet se baseava no texto e toda a socialização acontecia em fóruns e chats que podiam ser acessados com um apelido escolhido, não sendo necessário que o usuário revelasse nome, idade, sexo ou localização geográfica. Existiam também videogames e aventuras gráficas (como Habitat ou Second Life) onde se podia incorporar vários personagens ou escolher o gênero do avatar, permitindo um certo grau de experimentação com a identidade, por mais limitados que fossem seus efeitos nas estruturas sociais do mundo não virtual.
Para Helen Hester, professora associada de mídia e comunicação na Universidade West London, houve um distanciamento radical daquela internet em relação a plataformas como o Facebook e outras redes sociais nas quais se espera que seus usuários se identifiquem (por exemplo, mediante políticas de nome real) e os espaços online se tornaram principalmente espaços de autoapresentação visual. Ou seja, espaços de relacionamento por meio da imagem, onde a representação do corpo substitui o próprio corpo. Isso permite a quem não se sente confortável com a forma como é lido no mundo físico (fora da tela) controlar a forma como é representado e, portanto, se tornar visível e reconhecível em ambientes virtuais.
Os filtros podem levar a práticas altamente criativas de experimentação e exploração de novas identidades ao subverter os códigos dominantes de representação em relação ao gênero (como aqueles que dão uma aparência andrógina ou que dificultam uma atribuição binária) e podem até mesmo ser vistos como uma forma de performatividade pós-humana ao colocarem sobre o rosto características alienígenas ou de outros animais. Segundo um estudo recente da pesquisadora Claire Pescott, isso pode ter impactos positivos até mesmo entre os mais jovens: “Esses filtros poderiam ser vistos como fantasias ou acessórios usados virtualmente, assim como a maquiagem e as roupas na vida real. Essas versões idealizadas talvez gerem pressão para adotar continuamente essa pessoa fictícia, mas as crianças podem ter mais autonomia sobre essa falsidade. Em vez de considerá-la de uma forma essencialista, a distinção entre o real e o falso ficou borrada”.
Também não se trata de assumir ingenuamente que o controle sobre a própria imagem nessas plataformas acarrete uma mudança nas relações de poder existentes. Em primeiro lugar, são gigantes da tecnologia que lucram com os dados de seus usuários –no ano passado, o Instagram foi acusado de coletar ilegalmente dados biométricos obtidos por meio de seus sistemas de reconhecimento facial. E, em segundo lugar, todo esse potencial é cooptado e rentabilizado pelo aproveitamento de seu monopólio da mídia tecnossocial. A filósofa Alejandra López Gabrielidis, pesquisadora em Tecnopolítica da Universidade Aberta da Catalunha, afirma: “Grande parte do fluxo de comunicação acontece nessas redes. Renunciar totalmente a elas implica renunciar a grande parte das dinâmicas do diálogo e da socialização contemporâneas.”
López Gabrielidis aposta em uma filosofia de uso que empregue “dinâmicas de presença e ausência nas redes sociais”. Trata-se, portanto, de ocupá-las estrategicamente, por um lado, e, de outro, de promover o desenvolvimento de filtros mais inclusivos que, ao invés de imporem algoritmicamente um padrão de beleza inatingível, permitam ao usuário explorar o caráter lúdico e performativo da identidade, que na era digital é (para o bem ou para o mal) cada vez menos estática e mais mutável.
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Fonte: https://brasil.elpais.com/tecnologia/2021-09-04/os-filtros-do-instagram-que-ajudam-a-escapar-dos-limites-do-mundo-fisico.html