Mulheres negras explicam o significado da morte de Marielle pela perspectiva da antropologia, da militância e da dor de ter o filho executado pela polícia.
Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL, foi assassinada na noite desta quarta-feira (14), aos 38 anos. Militante negra, feminista, periférica, mãe e lésbica, a carioca atuava em múltiplas frentes de resistência e lutava, em especial, contra a brutalidade das ações policiais nas favelas.
Frente à intervenção federal na segurança pública, no Rio, ela ficou ainda mais em evidência e foi nomeada relatora da comissão de representação que acompanhará tal ação. Porém, antes que iniciasse esse trabalho, foi morta a tiros.
“Não temos mais direito nem sequer de lutar pelo direito à vida. Porque é isso o que acontece: execução, queima de arquivo”, diz Marcia Jacinto, que era amiga pessoal de Marielle. Os caminhos de ambas se cruzaram em meio à árdua batalha que Marcia travou contra a Justiça, para que os homens que mataram seu filho fossem julgados. Hanry Silva Gomes da Siqueira foi executado por policiais no Morro do Gambá, aos 16 anos, em 2002. As prisões viriam a acontecer só em 2010.
A caminho do velório da amiga, Marcia nos contou que ainda não havia conseguido assimilar mais essa perda, mais essa execução de um dos seus. “Minha amizade, meu carinho e meu respeito pela Marielle serão eternos. Isso tá engasgado aqui em mim e eu não sei como vai ser a minha reação quando eu chegar lá [perto do caixão] e ver ela”.
O Brasil dividido frente ao caso Marielle
Da mesma forma que Marcia, a polícia também acredita que Marielle tenha sido executada, que ela estava marcada para morrer e não foi vítima de um crime comum, desses gerados pela violência crescente em nosso país.
A vereadora foi atingida com cinco tiros na cabeça, todos mirados em sua direção. Na linha dos disparos, o motorista Anderson Pedro Gomes também acabou sendo morto, mas não era o alvo.
Por todo Brasil – e também no exterior – o assassinato de Marielle está gerando comoção. “A maioria dos partidos, incluindo legendas da direita, manifestou profundo pesar pela morte da nossa querida Marielle Franco e também expressou solidariedade às famílias das vítimas e às companheiras e companheiros do PSOL”, diz Lívia Duarte, membra da direção nacional do partido.
Mesmo assim, na trincheira das redes sociais, a realidade é outra. Por todo lado ecoam comentários de ódio, dizendo que a vereadora “ironicamente foi morta pelos bandidos que ela mesma defendia”.
“As pessoas que pensam dessa maneira querem o retrocesso do Brasil. Retrocesso esse que já está acontecendo. A sociedade não está mais doente, ela já está agonizando. Mulheres negras dificilmente ocupam cargos de poder e, além disso, Marielle defendia todos aqueles que não tinham voz, sem medo de fazer denúncias. Por isso foi calada”, diz Leci Brandão, deputada estadual de São Paulo, pelo PCdoB, e importante ativista negra.
Marielle e o genocídio do povo negro
“UPP: a redução da favela a três letras”, esse foi o título da dissertação de Marielle quando fez mestrado em Administração Pública pela Universidade Federal Fluminense. Por falar sem rodeios que as Unidades de Polícia Pacificadoras seriam ferramentas de um massacre nas favelas e por continuamente denunciar policiais truculentos, Marielle era tachada como defensora do crime. Mas o que a vereadora defendia era o fim do genocídio da população negra.
E é realmente legítimo afirmar que o Brasil está diante de um genocídio? Luciane Rocha, doutora em Antropologia Social e Estudos da Diáspora Africana pela Universidade do Texas e pesquisadora de pós-doutorado pela Universidade de Manchester, explica que sim.
“Dizer que a população negra vive um genocídio tem a ver com a história da formação do Brasil e tem a ver com uma análise da realidade atual. A história da formação do Brasil é anti-negra, anti-negritude. A Polícia Militar do Rio de Janeiro foi formada para conter a massa da população de escravos e ex-escravos para proteger a Corte. O que nós vemos no decorrer dos anos é um refinamento, uma atualização das práticas que eram implementadas aos escravos e ex-escravos e que é usada até os dias hoje”.
Luciane atenta para o fato de que o conceito de genocídio é político e analítico. Isso porque, aqueles que defendem que o uso do termo é ilegítimo segundo as definições da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, alegam que não existe por parte do Estado a declarada intenção de matar membros da população negra.
“Mas diversos pesquisadores apontam que, se nós formos olhar os dados e as consequências do que está sendo implementado pelo Estado Brasileiro dá para ver nitidamente que o alvo é a população negra”. Segundo Luciane, isso pode ser percebido não só em ações que resultam em homicídio, mas também pela observação de questões como a da violência obstétrica, por exemplo.
Ao falar das UPPs e denunciar a polícia, Marielle estava batalhando contra esse genocídio, não defendendo a impunidade de quem comete crimes. Afinal, a forma como a segurança pública vem sendo articulada no Brasil já se mostrou: 1) ineficaz; 2) responsável pelo sofrimento de milhares de negros executados e suas famílias.
“É uma farsa essa guerra às drogas nas comunidades. Porque todo mundo sabe que existe cocaína na Zona Sul, existe maconha na Zona Sul, existem armas na Zona Sul e a polícia não expede mandado de busca e apreensão nos grandes condomínios de lá, por exemplo, mas criminaliza um território inteiro, que são as favelas do Rio de Janeiro. O helicóptero apreendido com toneladas de cocaína nunca teve um dono, mas existe essa fachada que é a fachada da repreensão do varejo das drogas”, aponta Luciane.
Ao final, a pergunta que fica é aquela que Marielle Franco repetiu tantas vezes em sua trajetória: “Quantos mais vão precisar morrer pra que essa guerra acabe?”
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